Ele comia como se aquele pedaço de carne fosse o último do planeta.Mantinha os cotovelos apoiados grosseiramente sobre a mesa, os olhos fixos no prato.Do outro lado da mesa ela olhava ele que olhava o prato.Suas pálpebras piscavam conformadas, mas seus dentes roíam suas unhas, vorazes.Tudo que se ouvia era o som de um relógio que pendia solitário na parede branca e um ocasional tilintar de talheres.
Era um dia mormacento de verão quando ela ouviu a campainha tocar.Estava na cozinha, o suor escorrendo pelo seu rosto enquanto cortava minuciosamente uma cenoura desbotada.Largou a faca e caminhou para a porta, imaginando quem seria a uma hora dessas.Estava com calor e com expectativas.Nada.Olhou novamente para os dois lados e tudo que viu foi a rua, sedenta, derretendo com o sol alto.Deu os ombros e voltou para os vapores da cozinha.
Já passava das oito quando ele chegou.Jogou as chaves e a mala no sofá, como de costume.À medida que caminhava em direção a ela, ia afrouxando o nó da gravata.Deu-lhe um beijo cansado nos lábios e sentou-se do outro lado da mesa, admirando o jantar impecavelmente preparado.Acabou de comer e satisfeito se levantou, deixando para trás somente pratos sujos.Ela continuava lá, inerte, incapaz de engolir sequer um grão de arroz.Assustou-se com o sobressalto de suas pernas, que obrigaram-na a se levantar.
Dessa vez ela esfregava energicamente o fundo de uma panela quando a campainha tocou.No mesmo horário de ontem, se não estava enganada. Torceu o nariz.Um pedaço quadrado de papel, era só isso, colocado bem no centro do capacho.”Vinte e três” estava escrito na frente, com letras feitas à mão livre. Passaram-se mais dois dias e em cada um deles ela recebeu outros dois papéis com números diferentes.Dessa vez foram “cinco” e “noventa e nove”.Nada fazia sentido, ela passava horas e horas pensando, obcecada.Já havia cogitado a idéia de brincadeiras de mal-gosto de algum vizinho ou até um engano.Mas no fundo ela sabia que não era nada disso.
O vento daquela tarde trouxe com ele fantasmas do passado, podia-se sentir o cheiro de uma mistura de amêndoas com nostalgia.Religiosamente a campainha tocou.Uma rosa vermelha sorriu calorosa aos seus pés quando ela abriu a porta.O papel desta vez revelava “doze”.
Ele narrava uma história fútil no jantar daquela noite.Ela brincava com a taça, fingindo prestar atenção no que ele dizia.Sua cabeça latejava, seu cérebro corria, percorrendo todos os campos do conhecimento, tentando sem sucesso combinações mirabolantes para aqueles números:
-...e agora estamos processando todos eles.O problema é que todo esse dinheiro sai do meu bolso.
“Matemática.Dois mais três são cinco, mas cinco somado com cinco não dá nove.Muito menos noventa e nove”.Ela começou a roer as unhas.”Doze?Seis mais seis!Mas de onde veio esse seis?”.
-Que dia é hoje? – sua voz cortou o ar.Ele estava segurando uma caneta, com o talão de cheques aberto.
Um raio clareou o céu lá fora, anunciando um temporal.
-Vinte e três de maio.
Ela parou de respirar.Vinte e três do cinco.Hoje fazia exatamente dez anos.Tudo fazia sentido agora, todos aqueles números, todo aquele mistério.Ela pensava que seria diferente.Sentiu suas mãos suarem, o sangue pulsando mais forte nas suas veias.Lá fora, a chuva açoitava o telhado sem piedade.”Meia noite”.Doze.
Nas pontas dos pés ela se esgueirou para fora da cama.Ele ressonava como uma criança cansada.Na janela da sala, espiou por entre as cortinas.Lá estava a única irregularidade de seu passado plano e branco, parado na chuva, olhando exatamente para a fresta de onde ela espiava.Ele não sorria, somente esperava.Ela encostou a palma da mão no vidro frio e uma lágrima solitária escapou de seus olhos.”Não posso, não mais”.Como se lesse pensamentos, ele se virou e sumiu na rua escura, sem olhar para trás.
Ela não ouviu nenhum barulho naquela noite, até a chuva havia cessado.Parecia que todos silenciavam em seu respeito.Estavam calados, de luto.Eram como entes queridos com olhares de piedade enquanto observavam-na enterrar sua própria vida, dia após dia, jantar após jantar.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
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